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Ela: amor em tempos virtuais

  • Por Pablo R. Cardoso
  • 2 de set. de 2015
  • 4 min de leitura

Ah, como é bom ir ao cinema e ver um filme tão belo como “Ela”! E como é melhor ainda poder admirar uma discussão tão refinada em uma fita comercial! Foi com um misto de entusiasmo com inebriado de alegria que deixei a sala após conferir o último trabalho de Spike Jonze, cineasta que, devo confessar, sou pouco familiarizado.


Em “Ela” acompanhamos Theodore tentando reestruturar a sua vida após o fim do casamento e lidando constantemente com a dor do amor mal resolvido e com a solidão resultante. Enquanto está errante, buscando aqui e ali coisas que tornem seus dias menos miseráveis, acaba adquirindo um novo sistema operacional inteligente, cuja interface interativa é batizada de Samantha. Aos poucos, ao apresentar o mundo para ela e fazer com que conheça a faceta humana, ambos começam a se envolver e se apaixonam.


Essa ficção científica “de Humanas” trata de um tema que eu me interesso bastante: o virtualizar da vida. O que quero dizer com isso é o para além de nossa cada vez maior dependência dos meios digitais. Chamo de virtualizar o movimento de diminuir ou parar de investir no caráter pulsante do viver e apostar em artificializações ou substitutos para isso. Com isso, deixamos de ligar com os obrigatórios efeitos, sensações e eventuais desagrados dessa experiência, jogando para escanteio a vida propriamente dita e investindo em simulacros do real.


Talvez um dos exemplos mais explícitos dessa virtualização apareça já na primeira cena de “Ela”. De sorriso apaixonado e olhos cerrados e vibrantes, ouvimos Theodore recitar palavras calorosas enquanto narra aventuras emocionantes. Passado alguns segundos, percebemos que o protagonista está em um exercício de escrita, compondo uma carta para uma pessoa que não conhece e inventando eventos que possam participar da história entre os envolvidos nela. Como um poeta, finge a emoção que deveras sente. Em um travelling pelo seu escritório, somos apresentados aos seus colegas de trabalho e entendemos que se trata de uma empresa que concebe cartas escritas à mão para pessoas que não querem despender seu tempo nessa atividade.


Esses primeiros minutos que, sozinhos, valeriam um interessante curta-metragem, estabelecem o tom de todo o longa. Perceba como todos ali envolvidos decidiram pela artificialização do ato de escrever um recado amoroso. Nem o remetente, que já contratou o serviço, se dá ao trabalho de passar à limpo as palavras ditas por um desconhecido nem Theodore ao menos digita o que compõe.


Essa virtualização também aparece no esporte simulado e que não cansa representado pelo jogo de realidade aumentada que o protagonista passa o seu tempo e também pelo sexo virtual com parceiras em chat rooms pré-selecionados. No último, o simulacro transforma a atividade, que geralmente envolve, além da fantasia e imaginação, o suor, fluidos, energia e tesão, em um espetáculo bizarro e tragicômico.


Falando em tragicômico, esse seria um risco que “Ela” poderia cair se não tivesse um roteiro tão preciso. É estabelecido que o protagonista seja, ou pelo menos está, desconectado do mundo real, de modo que sua falta de tato no blind date, principalmente em seu final, pudesse soar patética se não bem contextualizada. Isso levaria toda a história que seguisse essa cena à possível redução argumentativa de que tudo aconteceu porque o personagem excêntrico permitiu.


O que a boa ficção científica faz é pegar uma ou mais características que estejam presentes no contemporâneo e amplificar, mostrando através desse exagero alguns reflexos do que vivemos. Sendo assim, os personagens e as situações servem como prismas para que possamos pensar sobre nosso cotidiano. Com isso, apontar o dedo para ridicularizar Theodore é negligenciar uma faceta presente em nossa sociabilidade atual.


Quantos de nós compartilhamos segredos ou fortalecemos amizades em conversas que não existiram no tête-à-tête? Quem nunca se encantou conversando por alguém virtualmente e teve uma desilusão no papo ao vivo? Tenho certeza que você responderia sim para pelo menos uma dessas perguntas. E por não serem presenciais, mas intermediadas por uma plataforma eletrônica, essas experiências são menos válidas?


O filme é feliz em trazer isso para debate. A reflexão sobre se há uma dimensão de real nessa virtualidade implica no momento em que o protagonista fica hesitante quando confrontado pela sua ex-mulher, na hora em que esta diz que ele tinha dificuldades de encarar os problemas e tendia a ser evasivo. Se ele apresentava essa tendência, será que isso significaria que seu sentimento por Samantha não passaria de mais uma fuga?


A dúvida que assola Theodore faz com que ele fique pensativo e se distancie de sua paixão. Se por um lado ele não tinha a materialidade de uma experiência, por outro ele tinha a percepção de que o que sentia e o que trocava com o sistema operacional era genuíno. Sendo assim, se a relação o deixava menos miserável, o se preocupar e se importar se é virtual ou real fica em segundo plano. A conexão bastava.


E talvez seja esse um dos retratos que “Ela” faz tão bem. Como bem me disse um amigo quando conversamos sobre o filme, independente do tempo, das circunstâncias e do momento que atravessamos em nossas vidas, algo que é seminal no ser humano é sua necessidade de se ancorar em algum ponto ou alguém para dar sentido em nosso viver. É esse impulso (ou vocação) em se conectar com o outro que nos torna humanos, nem que seja virtualmente.

 
 
 

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