Edifício Master: o cotidiano como força motriz
- Por Pablo R. Cardoso
- 2 de set. de 2015
- 4 min de leitura

Gosto de afirmar que filmes servem para pontuar discussões sobre fatos corriqueiros ou centrais aos nossos dias. Acho interessante como a ficção revela verdades, às vezes escondidas, a partir de personagens que só existem no “faz de conta”. Todavia, documentários sobre “pessoas normais” também podem muito bem fazer essa função, como o excepcional “Edifício Master”, do já falecido Eduardo Coutinho.
Nesse pequeno mimo, o documentarista e sua equipe entrevistam 37 famílias que vivem no prédio supracitado, localizado na famosa Copacabana. Com suas câmeras bem postas e a sagacidade e o carisma que lhe eram peculiar, Coutinho arranca revelações, sonhos, frustrações, desejos e ambições de pessoas comuns. Ao rever o filme esses dias, pensei o quão delicado é esse retrato do cotidiano e de como encontramos um Edifício Master a cada esquina e não nos damos conta.
Fico particularmente tocado quando entro em contato com a sabedoria popular. Fiz graduação em Psicologia e, por isso, conheci a longa verborragia da área, que por vezes tende a enfeitar demais as situações em elucubrações além da conta. Ao ouvir a fala de uma pessoa absolutamente normal sobre assuntos corriqueiros, e não um grande autor renomado e reproduzido a exaustão, podemos nos surpreender com a densidade das palavras e da emoção que as acompanha. Tudo isso porque estamos acostumados a alimentar a cultura da grife, que implica em supervalorizar o conhecido e ignorar o ordinário.
Coutinho, como excepcional documentarista que era, não ligava para esses vícios da modernidade. Escondido atrás das suas lentes, só incentivava o entrevistado a falar. A mágica do cinema acontece na montagem, todos nós sabemos, mas só o dar espaço para a exposição de um comum já é algo louvável. E é esse material que surge que mostra o quanto, apesar dos pesares, somos parecidos uns com os outros em nossas vidas. E mais, a diversidade de tipos interrogados faz com que o prédio seja um microcosmo da cidade e, por consequência, da nossa sociedade. E também de nós mesmos...
Ao longo de todas as entrevistas conseguimos perceber a quantidade de dramas humanos que estão presentes no cotidiano. Uma senhora que vive sozinha diz que a solidão machuca muito, a ponto de viver uma vida dupla. Para os amigos ela se mantém “para cima”, mas botar a chave na porta de casa a faz entrar em contato com a terrível sensação de estar só. Essa trágica e crua descrição certamente nos é familiar. Por vezes queremos trancar os problemas e mergulharmos em nossos seguros abrigos, mas sucumbimos diante dos seus efeitos danosos em nós e revelamos nossa fragilidade.
Outra moradora, uma jovem, se mudou da casa dos pais para o Master na época do cursinho pré-vestibular. Enfrentou os desafios de morar sozinha e a saudade do lar e de seus confortos. Em sua fala apresenta questionamentos parecidos com o da velha canção Eu Também Vou Reclamar, de Raul Seixas: “Quem eu sou?/Da onde venho?/E aonde vou, dá?”. A responsabilidade de decidir o seu futuro é uma pressão que ainda não sabe como administrar, já que “não se imagina em nada”. Está cega diante das possibilidades que nessa etapa da vida aparecem em profusão, mas receosa do que pode vir a ser. A imaterialidade do futuro é assustadora não só para aquela moça, mas para todos nós. Fico imaginando qual caminho ela decidiu percorrer enquanto sorrio com o plano que sucede sua declaração: uma janela aberta.
Mas não é só de momentos de apreensão que vive esse documentário. Por muitas vezes achamos graça de conflitos de “pequeno burguês” que são mostrados. Testemunhamos casais confabulando sobre os amores do passado e os contrapondo com o presente, ponto que a relação apresenta típicos desgastes que se refletem na divisão irregular de tarefas domésticas, ânsias de que não são mais tão amados e demais desentendimentos.
Outro conflito dessa linha está em uma família que passou a ser discriminada pelo fato de terem se mudado da zona norte para a Copacabana. Os antigos vizinhos, muito mais amistosos e próximos que os novos do Master segundo o relato deles, os olham agora com desconfiança. Isso se dá por apostarem em uma ascensão social dos entrevistados, já que passaram a residir em uma área nobre da cidade. Ignoravam completamente a metragem reduzida do imóvel e desconheciam que o patriarca estava desempregado, mas o simples morar no badalado bairro deixava uma marca desconfortável. Era como se não pertencessem mais àquele antigo lugar. Curioso é que a família em questão não estava plenamente confortável na nova casa nem haviam resolvido o embate entre o saudosismo do passado com a vida no presente.
Falando em passado, talvez o trecho mais emocionante do documentário seja a fala do viúvo Henrique. Ele conta sobre como foi viver nos EUA e narra uma experiência que lhe marcou a vida: a vez que cantou com Frank Sinatra. É tocante ver como esse momento de grandeza é reproduzido com tanta energia pelo morador, que construiu o hábito de ocasionalmente cantar “My Way”, a música com que dividiu os palcos com o astro, para os vizinhos aos sábados. Podemos vislumbrar um pouco disso quando ele se apresenta diante das câmeras e faz malabarismos para controlar o choro.
E é cada um em seu jeito e cada história a sua maneira que passeamos pelas figuras de Edifício Master enquanto as deixamos passarem por nós. Em quase duas horas de projeção contemplamos o ordinário e encontramos beleza no banal, como nas cenas de um grupo levando um bolo de aniversário para uma amiga, de uma criança preocupada com o gatinho da vizinha no corredor ou da menina que canta no chuveiro quando está feliz. Em tempos que o corriqueiro é tão cinza e apressado, filmes como esse nos ensinam que ainda há o que se admirar no cotidiano.
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