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O Guns N’ Roses nosso de cada dia

  • Por Pablo R. Cardoso
  • 1 de set. de 2015
  • 4 min de leitura

Como boa parte dos brasileiros, fui criado dentro dos preceitos do catolicismo. Ainda criança, fiz a catequese e participei de todos os rituais envolvidos nisso. O que inclui, portanto, a comunhão e a primeira confissão. Lembro que meus coleguinhas estavam nervosos e preocupados com isso, enquanto eu apenas aguardava pela absolvição de todos os meus pecados.


Aliás, pecado é o conceito teológico que me parece mais interessante dentre toda a mitologia cristã. Mais do que dizer o que não deve ser feito dentro dos dogmas, eles dizem sobre a natureza humana. O raciocínio é simples: se é proibido, é porque somos capazes de ter tais sentimentos; se a punição e a penitência são implacáveis, é porque estamos muito mais próximos da danação. E, particularmente, gosto de pensar em um desenho de ser humano que é carregado de vícios condenáveis.


Dizer isso hoje em dia não é bem visto, ou como dizem por aí, não pega bem. Entretanto, já o disse. Ainda acredito na disposição irregular entre as grandezas no universo. Há mais ignorância que sabedoria, mais irrelevância do que relevância e, consequentemente, penso que a proporção do vício é muito maior que a da virtude. Quero dizer, com isso, que atingir certa maturidade moral é um esforço dificílimo e contínuo. Somos reféns do vício.


O grande mestre Nelson Rodrigues disse uma vez o seguinte:


“É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda, acho mais importante a hediondez. O ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez. Eu me proponho a reconhecer a hediondez.”


Concordo com o autor. Na condição de um psicólogo rodrigueano, como me chama um amigo, também me interesso pela face hedionda presente em todos nós. Aliás, desconfio que essa seja a faceta que mais me atraia. Não exagero ao dizer que é a primeira que me chama os olhos, já que isso não seria verdadeiro. A graça e a beleza são anteriores a qualquer julgamento, mas meus olhos treinados no pessimismo são convidados a captar o hediondo com facilidade.


Em tempos de MBA obrigatório em marketing de comportamento isso não é uma tarefa tão simples quanto se parece. O acobertar esse lado obscuro do humano é antigo, mas os projetos para “salvar” o homem desenvolveram novas técnicas no contemporâneo. A mais comum é a de vender a falsa imagem de que todos somos bem resolvidos e livres de preconceitos.


Nesse caminho entra uma interessante construção: o guilty pleasure. Ele é o nosso pecado chique, a perversão usando Louis Vuitton e fazendo compras na Paulista, depois de um Starbucks e fotos de cupcakes no Instagram. Como tudo que se pretende ser descolado e moderno, o termo carrega um anglicanismo desnecessário. “Segredinho sujo”, seu codinome anterior, é brasileiro e popular demais para o contemporâneo. E “sujo”, diriam os publicitários, afasta os clientes e causa taquicardia nos chefes.


Exagerei na figura de linguagem, mas o que quero dizer é que o guilty pleasure, ao contrário do que falam, não “arranha a imagem”. Mais cool do que ter um, é assumi-lo aos outros. Isso mostra que você é uma pessoa de “cabeça aberta”. Ele pode virar, como tende a acontecer, motivos de conversas e risadas com a intenção de zombar do passado ou presente. Faça o teste.


Não há nada de socialmente prejudicial, muito menos abominável, em assumir, por exemplo, que gosto até hoje dos exageros e das farofadas do Guns N’ Roses e que sinto falta disso no rock and roll. Ou, talvez, que acho graça nas letras cafajestes e despreocupadas de alguns sertanejos atuais. Ninguém vai me virar a cara ou atravessar a rua ao me ver se souber que gosto muito das composições de Odair José.


Bem da verdade é que os guilty pleasures dizem mais sobre nós mesmos que qualquer perfil bem construído no Facebook, cheio de postagens inteligentes e falas para os outros. Não apenas porque eles revelam aquilo que verdadeiramente nos atrai, mas, principalmente, por funcionar como reflexo da nossa dimensão ridícula e cafona. Dimensão essa que insiste ao tentarmos, fracassadamente, ser algo maior do que conseguimos ser, mostrando, no processo, quem e o que realmente somos.


Sendo assim, não há nenhum sacrifício envolvido ao lidar com o pecado chique nosso e alheio, nenhum esforço moral é exigido. É uma relação em que só entramos em contato com a face linda, retomando Nelson Rodrigues, de nossas contrapartes. E isso é muito fácil e atraente. Além de muito canalha…


Sentimos na carne quando tocamos a outra face. Dá náusea, dói, ficamos remoendo a angústia. Quando tratamos com o hediondo em nós, o espelho nos violenta mais que o comum. Tanto o da parede quanto o dos olhos dos outros. Lidar com a vida em todas as suas instâncias não é tarefa simples nem que realizamos com um sorriso gratuito no rosto.


Como se não fosse pouco, ainda temos que enfrentar o fato de que não estamos sós no mundo. Nessas horas os guilty pleasures são meros aperitivos. Só se conhece alguém realmente quando se entra em contato com o hediondo alheio. E, da mesma forma, só há relação verdadeira quando esse lado consegue ser, minimamente, suportado.

 
 
 

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